Por: André Oliveira
Primeiramente, permitam-me
apresentar o atleta tema
deste artigo àqueles que não acompanham o atletismo
mundial.
Christian Coleman é um corredor
estadunidense, nascido em Atlanta, Georgia, no dia 6 de Março de 1996.
Atualmente, disputa as modalidades 100 e 200 metros rasos, e também provas mais
curtas (em geral, 60 metros rasos). Coleman é hoje tido como "o homem mais
rápido do mundo", após a aposentadoria de Usain Bolt, no ano de 2017.
Algumas de suas principais
conquistas: foi atleta integrante da seleção olímpica de atletismo dos Estados
Unidos, nas Olimpíadas do Rio (2016); é multimedalhista do IAAF World Championships
(prata em 2017, dois ouros em 2019 – indoor e outdoor); foi o vencedor da
Diamond League 2018; é o atual detentor do recorde mundial na prova dos 60
metros rasos (6.37 segundos, em 2018), entre várias outras.
Recentemente, Coleman esteve sob
ameaça de receber uma suspensão por período mínimo de 1 (um) ano e máximo de 2
(dois) anos, em razão do cometimento de uma whereabouts
failure. Novamente visando à satisfação da curiosidade do leitor
não-entusiasta do atletismo, segue explicação a respeito desta infração ao
Código Antidopagem da World Anti-Doping Agency (WADA).
Como é do conhecimento de alguns, os
atletas de alto nível são obrigados a informar seu paradeiro às autoridades do
esporte uma vez a cada trimestre, de modo a possibilitar a realização de testes
antidoping aleatórios, como parte da política antidopagem da WADA.
Informar sua localização de maneira
inadequada, ou não fazê-lo, é considerado como uma filing failure pela WADA. Não estar presente no local e hora
indicados quando da realização de um teste surpresa é ato considerado como um missed test. A soma de 3 (três) filing failures e/ou missing
tests, em período de até 12 (doze) meses, constitui uma whereabouts failure, e encontra previsão
no art. 2.4 do Código.
A punição prevista para whereabouts failures é de 2 (dois) anos
de inelegibilidade para competir, podendo ser reduzida para 1 (um) ano, a
depender do grau de culpa do atleta, de acordo com o art. 10.3.2 do Código.
Esta redução não será aplicada caso seja percebido um padrão de mudanças de
última hora, que podem ter sido feitas como tentativa de burlar o sistema e
evitar testes surpresa.
Se fosse confirmada a punição a
Coleman, na audiência inicialmente marcada para o dia 4 de Setembro de 2019, o
atleta ficaria de fora do IAAF World Championship 2019, em Doha, e das
Olimpiadas de 2020, em Tóquio, mesmo que fosse aplicada suspensão pelo prazo
mínimo. Contudo, no dia 2 de setembro, as acusações (feitas pela USADA – United States Anti-Doping Agency) foram
retiradas, por recomendação da WADA. Por quê?
As filing failures de Coleman datam de 6 de Junho de 2018, 16 de
janeiro de 2019 e 26 de Abril de 2019. No entanto, há uma regra no ISTI (International Standards for Testing and
Investigations) da WADA que prevê que filing
failures devem ser datados do primeiro dia do trimestre durante o qual
venham a ocorrer[1], e
não do dia em que houver um teste inviabilizado pela falha do atleta ao
informar seu paradeiro.
Isto significa que sua primeira
infração deve ser datada de 1 de Abril de 2018, e nao 6 de Junho; assim, o
período transcorrido entre a primeira e a última infrações teria sido superior
a 12 (doze) meses. Restou descaracterizada, pois, a whereabouts failure do atleta - ao menos de acordo com seu advogado
de defesa, Howard Jacobs, que fez uso deste argumento.
Este foi o parecer enviado pela WADA
à USADA, que, seguindo esta linha, retirou as acusações, fazendo com que o
atleta se tornasse novamente elegível, e pudesse disputar competições
livremente. Não havendo empecilho para que competisse, ele participou
normalmente do mundial em Doha, e conquistou o ouro nos 100 metros rasos.
A repercussão foi grande. Kara
Goucher (duas vezes representante dos EUA em jogos olímpicos) teceu uma das
críticas mais pesadas: “imagine quebrar uma regra muito importante, com
consequências imensas, apenas para descobrir que há outra regra que inutiliza a
regra quebrada”.[2]
Outra forte manifestação em contrário veio do medalhista paralímpico Ali Jawad:
“as regras não estão sendo aplicadas universalmente”[3].
Após a retirada das acusações,
Coleman acusou a USADA de perseguição, e exigiu que fosse feita uma retratação
pública por parte da organização.
De fato, Coleman foi mais testado do
que a média dos atletas estadunidenses - 20 vezes entre 2018 e 2019, de acordo
com a própria USADA[4]. A
média geral para o mesmo período é de aproximadamente 2,5 vezes por atleta
(alcançando quase 3, se considerado apenas o atletismo)[5].
Ainda que o ideal seja testar os
atletas de modo aleatório (e não de acordo com seu desempenho), pode-se considerar
que, de certo modo, a USADA vem seguindo a cartilha da WADA, no que se refere à
baixíssima tolerância e postura quase inquisitorial, quando o assunto é o
cometimento de violações previstas no Código Antidopagem.
Em outros casos recentes, a WADA se
manteve fiel às suas rigorosas diretrizes.
As atletas Brianna Rollins,
medalhista de ouro nas Olimpíadas do Rio, e Lizzie Armisted, foram suspensas
pela entidade, em função de violações semelhantes. A primeira admitiu a falha e
reconheceu ser justa a punição; a segunda apelou ao CAS, e conseguiu ver a
decisão derrubada, em razão de suposta falha procedimental na realização de 1
dos 3 testes perdidos.
Voltando ao caso Coleman: sua
primeira infração foi considerada uma filing
failure, e, portanto, retroagiu ao primeiro dia do trimestre. Em caso de
aplicação da mesma lógica a todas as três, a última também seria datada 01 de
Abril (porém, de 2019) - ou seja, exatamente 12 meses depois, o que
configuraria violação ao art. 2.4 do Código Antidopagem.
Conversei com o especialista em
doping, Thomaz Mattos de Paiva, sócio do escritório mineiro MPNR Advogados (http://www.mpnr.com.br/?lang=pt-br),
que opinou: “no caso Coleman, a WADA, aparentemente, interpretou a ausência de
previsão específica de contagem do prazo de 12 meses do art. 2.4 no sentido de
favorecer o atleta, fazendo valer o princípio in dubio pro reo. Ao que tudo indica, a contagem foi feita
incluindo a data da primeira violação (1 de Abril de 2018), de modo que a
terceira violação, datada de 1 de Abril de 2019, teria ocorrido 12 meses e 1
dia após a primeira - ou seja, não foi considerada configurada a whereabouts failure.”
Para preservar os atletas, a WADA
evita revelar detalhes a respeito de investigações que acabem em absolvição
(art. 14.3 e seguintes do Código); logo, é difícil concluir o que quer que seja
a respeito do caso em tela.
No entanto, caso a interpretação dos
fatos aqui descrita esteja correta, a organização pode estar decidindo,
finalmente, abrandar um pouco sua postura de opressão absoluta em matéria de
luta contra o doping. Considerando a quantidade (relevante) de casos em que
atletas se tornam réus por atos falhos ou por inocência, dita mudança seria, de
fato, muito benéfica.
O grande problema é que, se esta
transição for demasiado lenta, a insegurança jurídica gerada pode ser muito
prejudicial. O atleta tem o direito de ter certa previsibilidade em relação às
consequência de seus atos, especialmente se puderem causar o fim de sua
carreira esportiva, em termos práticos, como ocorre casos nos quais punições
demasiadamente severas são aplicadas pela WADA.
Esperemos que, mais e mais, a WADA
se posicione como uma figura neutra, deixando de lado a fomentação à famigerada
“indústria do doping” - e que isso se consolide rapidamente, pelo bem do
esporte como um todo.
Texto retirado de:
https://lexsportiva.blog/2019/11/20/coleman-case-study/
[1] Comment to
I.1.3: For purposes of determining whether a Whereabouts Failure has occurred
within the 12-month period referred to in Code Article 2.4, (a) a Filing Failure will be deemed to have
occurred on the first day of the quarter for which the Athlete fails to make a
(sufficient) filing; and (b) a Missed Test will be deemed to have occurred
on the date that the Sample collection was unsuccessfully attempted.
[2] "Imagine
breaking a really big rule with big consequences, only to discover a new rule
which makes prior rule useless."
[3] "The rules
are not being applied universally."